quarta-feira, 19 de outubro de 2016

APOLOGETAS DO TERROR EM TEMPOS DE VOTO

 APOLOGETAS DO TERROR EM TEMPOS DE VOTO

Por Padre Gegê
(Pároco da Santa Bernadete (RJ), membro do Núcleo Fé e Política Padre João Cribbin , mestre em Teologia sistemático-pastoral  PUC-RJ e  doutorando em Ciência da Religião PUC-SP)


A palavra apologia (no grego apologeistai), no sentido amplo do termo,  significa “tomar a  defesa de alguém ou algo”, o que no campo religioso implica na atividade de defesa do patrimônio da fé ou crença. Com maior ou menor grau, pode-se dizer que toda fé suscita um caminho de defesa por parte de seus adeptos, crentes ou fiéis. O catolicismo no curso de sua longa história buscou (e ainda o faz) de modos e formas variadas salvaguardar as verdades da fé na ordem do legitimo e necessário “pudor”, característico de quem mexe com realidades sagradas. Frei Clodovis Boff em Uma Igreja para o Novo Milênio (2003:10) ao tratar de uma Igreja que vive do e no mistério sublinha a necessidade de uma “Igreja que guarde o ‘pudor dos mistérios’.Que ‘não jogue suas pérolas aos porcos (Mt7,6)’”.E essa atitude de defesa não somente é necessária quanto salutar.   Mas também outras tradições religiosas possuem seus mecanismos e estratégias de preservação daquilo que acreditam, podendo chegar, por vezes, ao ideário compulsivo de “pureza” atrelado ao desejo de se distinguir o mais verdadeiro e genuíno do mais sincrético, misturado ou falso. Para a nossa breve reflexão, é suficiente afirmar o caráter positivo e, até necessário, que todo adepto de uma tradição religiosa tem de defender e salvaguardar o seu patrimônio material e imaterial. Trata-se, pois, da exigência da defesa ciosa dos Tesouros Sagrados. Contudo, o caráter necessário e positivo da apologia também pode abrir caminhos desastrosos e belicosos, geradores de toda sorte de violência, intolerância e tirania. A história da inquisição patrocinada pela Igreja católica é exemplo inconteste da faceta monstruosa que pode emergir do desejo de se defender o patrimônio de fé. E essa atividade torna-se mais perigosa e nociva quanto mais o sujeito religioso se sente ou se auto proclama o “DONO DA VERDADE”.  Esse sentimento de superioridade do sujeito religioso é capaz de fazer dos outros inimigos potenciais e dos declaradamente divergentes alvos privilegiados das mais diferentes formas de ataques (palavras, escritos, vídeos, imagens, postagens etc...); e tudo justificado pela DEFESA DA FÉ. E é sob essa bandeira que religiosos são capazes das mais perversas investidas com os aplausos da turba ou as “curtidas” irracionais dos  seguidores do mundo virtual. Desse modo, constrói-se  a CULTURA DO TERROR E DA DESTRUIÇÃO, contrária a vida, a obra e ao sonho de Jesus Cristo. Afirma o papa emérito Bento XVI em Luz do Mundo (2011:71-72) “É evidente que o conceito de verdade hoje suscita muita suspeita. É justo dizer que dela se tem abusado muito. Em nome da verdade, atingiu-se a intolerância e se cometeram atrocidades (...) Nós jamais possuímos a verdade; na melhor das hipóteses, ela é que nos possui. Ninguém coloca em discussão o fato de que seja necessário usar de prudência e atenção antes de reivindicar para si a verdade”. E também escreve o papa emérito que “a verdade não reina por meio da violência” e que Jesus não defendeu “a verdade com legiões...”.  Sublinha também Bento XVI: “A verdade há de ser procurada, encontrada e expressa na ‘economia’ da caridade’!” Enfatiza, nesse horizonte, o teólogo Mario de França Miranda em Aparecida, a hora da America Latina (2006:56): “O dialogo pressupõe uma consciência comum em seus interlocutores, a saber, nenhum deles tem a posse plena da verdade”. E sublinha ainda: “Qualquer motivação espúria destrói o diálogo, seja ela auto-afirmação, consciência de superioridade, defesa da própria opinião, destruição do outro que ameaça por ser diferente, aumento de prestigio e de poder”.  E Dom Helder, o “bispo vermelho”, já nos ensinou com a autoridade de um APOLOGETA DA PAZ: “A única guerra legítima é aquela que se faz contra o subdesenvolvimento e a miséria”. A propósito, a causa dos pobres necessita de mais apologetas do que a Igreja. E como não ver em Dom Helder Câmara um dos maiores APOLOGETAS DA VIDA E DA CAUSA DOS POBRES em nosso continente. E nessa linha diz, corajosa e desconcertadamente, o “bispo vermelho”, amante de Deus e dos Pobres: “Chega de uma igreja que quer ser servida; que exige ser sempre a primeira...”. O papa Francisco escreve sugestivamente em O nome de Deus é misericórdia (2016:98): “ Durante uma assembléia do episcopado italiano, um irmão bispo citou uma expressão extraída De Abraham de Santo Ambrósio: ‘Quando se trata de distribuir a graça, Cristo está presente; quando se deve exercer o rigor, estão presentes apenas os ministros mas Cristo está ausente”.
Sob o prisma cristão podemos dizer que APOLOGIA SEM BUSCA ESMERADA DA VERDADE E SEM ENGAJAMENTO COM A DEFESA DA VIDA DOS VULNERABILIZADOS TANSFOMA-SE EM TIRANIA INSENSIVEL TRAVESTIDA DE AMOR À IGREJA; É ESTRATÉGIA DIABÓLICA PARA DESTRUIR, COVARDEMENTE, O OUTRO. NÃO HÁ APOLOGIA SADIA SEM CARIDADE. Salienta Bento XVI que “caridade na verdade é um principio à volta do qual gira a doutrina social da Igreja...”.  A apologia, nesse registro, divorciada do amor engajado se torna um atentado à “cultura da Misericórdia”. E adverte sapiencialmente o papa Francisco: “Apenas os que dialogam podem construir pontes e vínculos”. O Cardeal Walter Kasper em “A Misericórdia: condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã” (2015:64) escreve de forma emblemática: “Assim, Deus leva a cabo, desde o principio mesmo da historia, uma ação em contraciclo com o mal, a perdição. A compaixão divina é efetiva desde o principio. A compaixão é o modo como Deus Se opõe e resiste ao mal, e se faz porta-voz dela. E não o faz com força e violência. Não se Põe a atacar, sem mais; antes pelo contrario, movido pela sua compaixão, cria sem cessar novos espaços de vida e bênção para o ser humano”. Mas, uma palavra ainda é preciso dizer: É sempre necessário discernirmos no Espírito se realmente estamos defendendo o Deus de Jesus ou os ídolos de nossas próprias projeções e interesses. Dom Pedro Casaldáliga adverte sabiamente em Nossa espiritualidade (2003:25): “Trata-se de saber se o Deus que adoramos é realmente o Deus de Jesus ou um ídolo mascarado. E esta pergunta abrange também a análise da função que a fé cristã desempenha na sociedade e na historia. Porque, podendo parecer um Deus cristão no âmbito reduzido da referencia bíblica ou do mundo pessoal, pode estar, de fato, exercendo funções sociais de legitimação de práticas e estruturas, inteiramente contrárias ao plano de Deus, ao Reino pregado por Jesus”.
No contexto do segundo turno do pleito eleitoral para prefeito do município do Rio de Janeiro, verifica-se, sobretudo nas redes sociais, um número significativo de sacerdotes católicos, em nome da defesa da fé, disseminando o TERROR e, desse modo, produzindo mais pânico no contexto eleitoral do que favorecendo à sociedade e, em particular aos fieis católicos,  a exercitarem com devida serenidade  o poder da inteligência que avalia e julga e a vontade que decide, conforme os ditames da consciência. Exemplarmente, cito algumas palavras de um sacerdote membro do conselho da Canção Nova (SP) num contexto do segundo turno das eleições presidenciais na disputa entre Dilma e Aécio. Esse caso é um bom exemplo para entendermos o papel de alguns segmentos da Igreja no atual momento. Em sua homilia inflamada e beligerante falando sobre o VOTO numa perspectiva apologética do terror, disse o sacerdote: “Eu me encontro agitado. São muitos e-mails que eu tenho recebido. E a questão é essa: ELEIÇÃO. Eu não posso deixar de falar também porque sou sacerdote da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo (...) nunca vi uma eleição tão agitada; por que de tanta agitação? Porque os rumos da Nação Brasileira está prestes a mudar, e ela poderá mudar para pior se neste segundo turno (eu vou falar com clareza) o PT ganhar (...) O PT está querendo aprovar leis onde o sacerdote não pode se pronunciar, não pode falar (...) Meu sacerdócio não é para os homens, é pra Deus. Fui ordenado para Deus e  não para os homens (...). Eu estou com Bento XVI, estou com a Igreja. Para o inferno eu não quero ir. Segundo turno está aí.... Estou preocupado com o segundo turno, mas já saibam: no PT eu não voto! E não voto em ninguém que esteja coligado ao PT. Não votei e não voto! (...). Estou com os bispos que estão ligados à igreja de Nosso senhor Jesus Cristo; os que não estão, eu não estou... Tô com Jesus!”      
É de extrema gravidade evangélica ouvir um sacerdote dizer que fora ordenado para Deus e não para os homens... Tal afirmação vai na linha contraria ao pensamento de São Policarpo, por exemplo, que se compreendia trigo de Cristo disposto a ser triturado para se tornar pão para os homens.E o referido sacerdote ainda se coloca como porta-voz do divino acerca dos rumos das eleições. Sintomático ainda é afirmar repetidas vezes que está com Bento XVI. Fica a pergunta: E o papa Francisco? Enfatiza acertadamente o teólogo da PUC-SP, João Decio Passos (2016:148-149): “O tempo da renovação da Igreja está aberto e não adere a ela quem não quer ou quem é contra (...) A preservação da instituição e da tradição é mais conveniente que a mudança e tende a impor-se pela inércia ou pela resistência velada ou explicita”.
Mas, infelizmente, o citado sacerdote não está sozinho, por isso, esse é só um caso dentre tantas outras narrativas nessa sinistra direção. Desse modo, o posicionamento do referido sacerdote não deve se visto como algo isolado ou situação estritamente de ordem pessoal. A plataforma evangelizadora da Canção Nova, em particular, bem como a perspectiva pentecostal de Renovação Carismática Católica (RCC), não obstante inúmeras contribuições que dão à vida eclesial, também revelam crassos limites, atrofias e cisões no que diz respeito à relação positiva ente fé e vida, religião e sociedade e espiritualidade e política. Em muitas dioceses os clérigos, sobretudos os mais  novos do segmento pentecostal carismático manifestam, em grande medida um distanciamento ( e até aversão) à marcha da Igreja pós Vaticanos II; sustentam com empáfia clerical   uma fé, intimista, personalística, moralista, exclusivista e beligerante. São clérigos novos na idade, mas, paradoxalmente,  velhacos no campo das idéias. Há forte inclinação para estética e pouca responsabilidade engajada  para com o destino do mundo. A perda de responsabilidade no horizonte ético é, segundo Lévinas, violência – aniquilação do outro. É fundamental, na acepção levinasiana, o encontro de meus olhos com os olhos dos outros; e o rosto do outro acusa meu ego reclamando uma resposta na ordem da defesa e do cuidado.  São de grande importância, nessa perspectiva, as palavras da teóloga Maria Clara Bingemer em Argila e o Espírito (2004:119) quando reflete sobre idolatrias nocivas para a vida e para a fé, um tipo egolátrico de ser religioso capaz de forjar ministros do tipo “absolutos incontestáveis. Escreve a teóloga: “O culto à personalidade: que cultua pessoas concretas, mesmo que sejam boas e beneméritas. A pessoa em questão é despojada de sua humanidade real e convertida em um objeto de consumo, cultuada como ídolo, consumida, e descartada quando já tiver sido suficientemente sugada e dela não restar senão o bagaço. Outra pessoa então substituirá o ídolo deposto em seu pedestal, lançado as bases para um novo culto, presidido por uma nova divindade. Onde há esse tipo de religiosidade idolátrica, as pessoas não são livres. Projetam seus desejos de absoluto em outras pessoas falíveis e frágeis, que perdem o papel positivo que poderiam exercer enquanto mediadores para se converterem em absolutos incontestáveis”
Termos, por exemplo, como Comunismo, Socialismo, Democracia etc..., como complexos psicológicos autônomos, assumem configurações de divindades sádicas eclipsando e obstruindo o sadio pensar. Na linha do pensamento de Pascal podemos dizer que, quando a razão vai embora os monstros fazem a festa.   E não se trata de defender o PT (PC do B, PSOL,PSTU etc...) como um APOLOGETA DA ESQUERDA. Meu intuito fundamental é chamar a atenção para um fenômeno triste e perigoso que ganha vulto na ambiência católica no contexto eleitoral do segundo turno no Rio. Uma coisa é a defesa sadia da fé, uma outra, totalmente diferente, é servir-se dos conteúdos da fé e da posição  eclesial para distribuir compulsoriamente  maldiçoes – ANÁTEMAS À LA CARTE. A propósito, na historia das primeiras comunidades cristãs também lideres afoitos e ciosos em defender a “pureza” da fé de forma radical e arbitrária causaram, por vezes, mais caos do que serenidade para o julgamento e consciência amadurecida para se decidir segundo o Evangelho. Na linha do dialogo e do engajamento positivo entre Fé e Política, católicos que se colocam no lado da ESQUERDA não tem o direito (em nome da fé) de demonizar, sem mais, a DIREITA; e o contrario é verdadeiro na mesma medida. E vale dizer acerca da tão satanizada ESQUERDA que nos mais diversificados processos de libertação de colonialismos, escravismos e regimes ditatoriais o papel da ESQUERDA (e a historia nos mostra isso, inclusive no BRASIL) foi (e é) tão importante e vital como são as operações do lado esquerdo do cérebro de cada humana criatura. Sabiamente disse Dom Helder: “Não se espantem se me virem do lado de gente da direita e da esquerda”. Espantoso seria ver Dom Helder traindo a Deus e a luta da libertação dos pobres... Dom Helder, de modo, original e profético, não separou o amor ao “Pai nosso” do compromisso com “Pão nosso”! Atesta Leonardo Boff em Brasa sob cinzas (1996:80): “Não devemos jamais separar o que Deus uniu: o pão nosso e o Pai nosso”. Para Dom Helder a afirmação, a partir da fé, de que o “homem não vive somente de pão”, seguiu, inevitavelmente, ligada à consciência histórica de que esse mesmo homem não vive somente da Palavra de Deus. Não gratuitamente Helder ouviu  da boca do então Papa   João Paulo II uma das mais belas e justas declarações, infelizmente,  não comum de serem ditas às figuras do episcopado: “Irmão dos pobres e meu irmão”! Nenhum Partido ou segmento político, por melhores que sejam seus princípios ou bandeiras, carrega consigo todos os elementos para se “salvar a Pátria”, tampouco para realização integral do ser humano. Por mais que todas as necessidades humanas fossem supridas, ainda assim restaria no coração sedento de cada pessoa o grito pela Transcendência, que nós cristãos nomeamos: DEUS – obscuro objeto do desejo! Já Santo Agostinho confessara: “Fizeste-nos para Ti e nossa alma fica inquieta enquanto não repousar em Ti. Papa Francisco escreve nas primeiras linhas da Constituição Apostólica sobre a vida contemplativa feminina (Vultum Dei Quaerere): “A BUSCA DO ROSTO DE DEUS permeia a historia da humanidade, desde sempre chamada a um dialogo de amor com o criador””.  Exemplarmente, o AMOR (e não o partidarismo) foi a sarça ardente que alimentou a vida de Dom Helder Câmara: Amor ao Deus dos Pobres e aos Pobres de Deus! Contudo, tal sublime AMOR não  isentou o “bispo vermelho” de fazer opções  concretas e corajosas no curso sempre cambiante da história...
 São oportunas e dignas de menção em nossa reflexão a constatação perspicaz do teólogo Mario de França Miranda em Aparecida (2006:58): “O discurso ético das autoridades eclesiásticas, o qual é sempre atento e presente quando se trata de questões da vida e da sexualidade. Deveria também se fazer ouvir com igual intensidade na área social, pois também aqui está em jogo a vida humana. Não podemos deixar de registrar certo declínio na proclamação da doutrina social da Igreja e na correspondente luta pela justiça nos últimos anos”.
O Documento 67 da CNBB que versa sobre as eleições se exprime no n.35: “Ao assumir compromissos políticos, a Igreja Católica o faz a partir do imperativo ético da defesa da vida, em cada momento de seu desenvolvimento terreno. Este é o critério máximo de julgamento de qualquer sistema político, dos modelos econômicos e das soluções técnicas. Esse imperativo ético se concretiza, em cada momento e lugar, em metas políticas. Diante da atual realidade brasileira, três grandes metas ganham prioridade: a erradicação da fome; o efetivo respeito dos direitos humanos para todos; o desenvolvimento sustentável, que garanta qualidade de vida à população e respeite a ecologia”.
E afirma profética e engajadamente o papa Francisco falando sobre a participação dos cristãos na política. Suas lúcidas palavras são oportunas no contexto do segundo turno das eleições: “Envolver-se na política é uma obrigação para um cristão. Nós, os cristãos, não podemos fazer como Pilatos e lavar as mãos, não podemos! Temos de nos meter na política, porque a política é uma das formas mais alta de caridade!”
No contexto do segundo turno das eleições para prefeito do município do Rio de Janeiro, se me perguntarem à queima roupa: Marcelo Freixo ou Marcelo Crivella? Respondo, neste escrito, repetindo as palavras de Jesus que não menosprezou a capacidade de raciocínio de ninguém, mas, antes, incentivou a reflexão e o poder da livre e consciente decisão em face das questões concretas da vida. Disse, certa vez, O APOLOGETA DA VIDA E DA PAZ, Jesus Cristo (Lucas:12, 54-56): “Quando vocês vêem uma nuvem se levantando no ocidente, logo dizem: ‘Vai chover’, e assim acontece. E quando sopra o vento sul, vocês dizem: ‘Vai fazer calor’, e assim ocorre. Hipócritas! Vocês sabem interpretar o aspecto da terra e do céu. Como não sabem interpretar o tempo presente?
 Nas palavras do teólogo Mario de França Miranda em Aparecida (2006:57), “faz-se mister novo aprendizado por parte de todos: membros da hierarquia e fiéis. Todos estão acostumados à oferta de solução pronta, definitiva, sejam autoridades ou fiéis"..
A propósito, disse o Papa na Capela de Santa Marta que a Igreja não pode assumir o papel de babá dos cristãos. E reconhece Mario França Miranda (2006:65):“Falta à Igreja um espaço para um debate sério e respeitoso entre os leigos sobre temas por vezes bem complexos da vida social, obrigando a hierarquia a contínuas intervenções e acostumando os católicos a esperarem sempre pronunciamentos imediatos por parte das autoridades eclesiástica”. Desse modo, o clericalismo triunfalista se retroalimenta da passividade serviçal e acrítica de um laicato com limitada formação e minguado protagonismo. E tal laicato atrofiado na capacidade de Ver, Julgar e Agir poderá estar condenado a sobreviver à mercê de uma multidão de videntes míopes, anjos do anátema, trombetas do armagedom, roletas da arca de Noé, arquitetos de uma cidade idílica, - urubus devoradores-compulsivos de carniça que só existem em suas apodrecidas mentes, “radicais do pouco” (na feliz e oportuna expressão de Alberto Caeiro), aves do mau agouro - tristes e beligerantes profetas de falas absolutas e incontestáveis...
 Diz, desconcertadamente, o Papa Francisco na contramão de uma Igreja triunfalista e ciosa das mundanas seguranças: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos”.
 São, nessa direção, atualíssimas as advertências proféticas e desafiadoras do “bispo vermelho”, Dom Hélder Câmara: “As massas deste continente abrirão um dia os olhos, conosco, sem nós ou contra nós… Ai do cristianismo no dia em que as massas tiverem a impressão de terem sido abandonadas pela Igreja, tornada cúmplice dos ricos e dos poderosos.
  Do lado oposto de uma Igreja afeita à discórdia com o mundo e à distribuição indiscriminada de anátemas, sinaliza o Papa Francisco: “Não há sentença válida sem esperança”. Desse modo, a mensagem sobre o pecado e o inferno não pode tomar o lugar do Evangelho da Misericórdia, da Alegria, da Esperança, do Dialogo, do Respeito, da Concórdia e da Paz! E enfatiza ainda o Papa Francisco: Não há necessidade de consultar um psicólogo para saber que quando você denigre o outro é porque você mesmo não consegue crescer e precisa que o outro seja rebaixado para você se sentir alguém”. Salienta Boff em Meditação da Luz: o caminho da simplicidade (2010:18-19): “A grande patologia presente em setores importantes das religiões e das igrejas é a autofinalização, ou seja, consideram-se fins em si mesmas, quando são meios e espaços a serviço da vida interior(...). Elas podem significar uma grande escravização que se revela pelo fundamentalismo e pelo terrorismo de base religiosa”. Considerando um novo tipo de clero distanciado do espírito do Concilio Vaticano II e afeito a uma apologia “mágico-fundamentalista” são oportunas,  atuais e proféticas as visões do teólogo  João Batista Libanio em Cenários da Igreja (1999:30-31): “Configurar-se-á o retorno do clericalismo. Surgirá uma geração que não conheceu as agitações renovadoras dos anos pós-conciliares nem os ardores da teologia da libertação das décadas de 70. Ela está sendo formada na instituição-padrão do seminário,  como observa L. R. Benedetti. Este clero acentuará ‘os sinais distintivos de sua condição – festas, vestes, poderes -, ausência de inquietação com relação ao destino da sociedade (e da Igreja), pouco amor (nenhum?) aos estudos, nenhuma paixão pelo ecumenismo, pela justiça social. Presbíteros mais preocupados com seu caráter e poder sagrados que com uma presença significativa no mundo, com o diálogo com a sociedade, com serviço competente ao homem de hoje”.
E escreve ainda: “Os termos ‘tradicional’ e ‘arcaico’ não servirão para designar o clero nesse cenário. Ao adotar costumes antigos e tradicionais, ele o fará com perspectiva bem diferente. Já não será o sacerdote piedoso, trajando batina surrada, das cidades do interior. Será um clero que cuidará dos pormenores de sua túnica, que usará a alta tecnologia de som em seus sermões, que recorrerá aos recursos teatrais e musicais sofisticado. Repetir-se-ão cenas que hoje se vêem de sacerdotes de ‘batina prateada’. Desse cenário futuro, vale o que sociólogo de Campinas afirma a respeito da ‘sacralização pós-moderna’, que consiste ‘numa combinação de um discurso mágico-fundamentalista (apologético) com os recursos mercadológicos da comunicação de massa’”.

Podemos, pois, concluir dizendo que a necessária e salutar DEFESA DO PATROMONIO RELIGIOSO pode também tornar-se sinistra justificativa para a DESTRUICÃO FISICA, PSICOLÓGICA OU MORAL DO DIFERENTE. E desse modo, os supostos defensores da fé (sem esperança e sem amor), podem tornar-se, amiúde, arbitrária e inescrupulosamente, TERRORISTAS DO SAGRADO - APOLOGETAS DO TERROR!
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Ps. Sobre Apologia: Apologia, filha dileta de Sã doutrina, em idade avançada, deu a luz a dois filhos: modéstia e Respeito. Não tardou pra gerar também Fanatismo e Guerra, gestados no mesmo cólon.  Apologia, pobre Apologia,  sofre da dor comum a muitas mães: perceber o avançar da idade e a triste sina de, em nenhum dia sequer, ter visto seus quatro filhos sentados à mesma mesa... Apologia, douta senhora, tem quatro companhias inseparáveis: Saudade, Verdade, Desgosto e Humildade. Com Saudade ela dorme, com Verdade sonha, com Desejo acorda e com Humildade vive (buscando, buscando, buscando...)

Ps. Dedico essa breve reflexão aos OLHOS do padre e profeta João Cribbin (Patrono-Ancestre do Núcleo Fé e Política; não pelo azulado de inesquecível beleza feito o manto de Mariama, mas porque não houve um único dia que o tenha encontrado que não tenha visto em seus subversivos olhos: SONHO, REALISMO E RESPONSABILIDADE PARA COM A LIBERTAÇAO E FECICIDADE DOS POBRES!


  
Referencias bibliográficas 
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti, A argila e o Espírito, Rio de Janeiro; Garamond, 2004.
BOFF, Leonardo, Meditação da luz,  2 ed. Petrópolis, RJ; Vozes, 2010.
_____________, Brasas sob cinzas, Rio de Janeiro, Record, 1996.
BOFF, Clodovis, Uma Igreja para o Novo Milênio, São Paulo, Paulus, 1998.
Dom Pedro Casaldáliga, Nossa espiritualidade, São Paulo, Paulus, 1998.
KASPER, Walter, A Misericórdia: Condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã, 2 ed. São Paulo; Edições Loyola; Principia Editora, 2015.
LIBANIO, João Batista, Cenários da Igreja, são Paulo, Loyola, 1999.
MIRANDA,Mario de França, Aparecida: a hora da America Latina, São Paulo; Paulinas, 2006.
Papa Bento XVI, Luz do mundo, São Paulo; Paulinas, 2011.
______________, Carta Encíclica, CARITAS IN VERITATE, São Paulo; Paulinas, 2009.
Papa Francisco, O nome de Deus é misericórdia, São Paulo; Planeta do Brasil, 2016.                                  
______________, Constituição Apostólica sobre a vida contemplativa feminina, São Paulo, Paulinas, 2016.
PASSOS, João Décio, As reformas na Igreja entre o institucional e o carisma (pp.137-154).In. SANCHEZ, Wagner Lopes e Figueira (Orgs), Uma Igreja de portas abertas, São Paulo,  Paulinas, 2016.